Rosa Alice Branco

al-efe :: fuso sem horário

cheguei a caracas entorpecida da viagem: o corpo a implorar duche. o hotel com um grande hall cheio de pontos de encontro em sofás e mesas. para já queria a informação da hora local. sabia que devia haver umas cinco, seis horas, de diferença, mas para espanto meu a diferença horária entre caracas e porto era, nem mais, nem menos, do que cinco horas e meia.


– ?

perguntei olhando para o recepcionista.

– sim, sim. exactamente. desde que caracas tem um novo fuso.

– mas como se pode ter um novo fuso? caracas não mudou de lugar e esta da meia hora é completamente ridícula.

o funcionário recolheu o sorriso. deixou um esgar de delicadeza pendurado no bigode.

sem saber o que pensar, eu. a percorrer o longo corredor com indicações de restaurantes: l’incontro, la terraza. ah, um cibercafé.

motor de pesquisa. vejam só:

O governo da República Bolivariana da Venezuela anunciou uma alteração no fuso horário do país. Até agora, esse país normalmente usava a Hora Padrão do Oeste da América do Sul.

O nome do novo fuso horário é Venezuela Hora padrão, e o nome a apresentar para este fuso horário é Caracas (GMT-04:30) .

fiquei siderada. agora sabia em que meridiano estava. um meridiano criado por decreto governamental. de lá fui para os andes onde a terra só conhecia as leis da leveza.

de novo no avião e a mala a recolher. não sei porque me sinto tão estranha depois de cada viagem. parece que continuo a andar sobre nuvens e a minha cabeça não vai de mochila ao ombro. sinto dificuldade em entrar na realidade. e só confusamente é que sinto aquilo a que se chama sentir. ainda assim ânsia pelo quarto. já a entrar no elevador quando perguntei as horas.

– sete e meia,

obrigada e essas coisas, mas à pressa.

estendida na cama acertei o relógio. acertar é dizer muito porque a diferença entre caracas e delar era de 3 horas e 15.

demasiado sono para questões. para cibers, recepcionistas. o lençol fresco e o ar infelizmente condicionado. lá fora queima e assim adormeci. de manhã acordei fresca: subir o primeiro monte como não ter peso. limpar o corpo, escutar os espíritos, ir ao encontro.

dois dias depois cheguei à cidade colonial: a meio da noite, a meio da preguiça. 1.52: diferença horária em relação ao porto. serra nevada no cimo. pequeno refúgio budista. veredas estreitas. infinito o coração: respira. deixa-te respirar.

a próxima paragem: diferença de 47 minutos. disse isto e o ar da tarde riu-se comigo. ficámos apenas a flutuar e deixei de beber a minha sede.

dias depois apanhei o avião para casa. enquanto esperava a mala vi o relógio de parede 3 minutos adiantado em relação ao meu. acertei cuidadosamente o pulso: adormeci no táxi. quando parámos à porta de casa disse ao taxista que ele se tinha enganado. não era bem ali, mas. ele olhou para mim como se eu fosse um ponto: de interrogação. um ponto desfocado. o nome da rua estava certo e o número da casa também. fui à net e revi o meu percurso. forte probabilidade de quem o fizer chegar atrasado ou adiantado em relação à hora do porto. simulei outros percursos e a hora chegava exacta. eu cheguei 3 minutos atrasada. tempo incompleto: 3 minutos que me separam do agora.

posso tentar refazer o trajecto mas sei que as probabilidades de coincidir comigo são insignificantes. devia estar aniquilada. mas não sinto ainda o que sentirei daqui a 3 minutos. nem passados 3 minutos o senti. nunca.

perdi o aqui o agora e o eu. uma mulher em mim caminha na praia: só tem a ganhar. não falo de tempo. falo de nada

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