Há palavras que não vergam, não se domesticam, não exercem o acto de domínio, muito comum no ser humano.
Helena Vasconcelos, in Y, Público, Julho 2022
★ 4.5 / 5
O poeta romântico Percy B. Shelley – ecologista, vegetariano, adepto do amor livre – encarou a Natureza, nas suas múltiplas manifestações, como um veículo das suas paixões revolucionárias que incluíam o conhecimento e a empatia em relação a todo o universo, incluindo seres humanos, animais, plantas, minerais, e a constatação de que a Natureza é uma força imparável e poderosa que tanto pode destruir como regenerar, cumprindo os eternos ciclos da morte e do nascimento.
Pensa-se em Shelley quando se lê os 44 poemas reunidos em Amor Cão e outras palavras que não adestram de Rosa Alice Branco que faz saber, logo a partir do título, que existem palavras que não vergam, não domesticam, não exercem o acto de domínio, muito comum no ser humano o qual, desde que se (re)conhece, não consegue evitar essa tendência malsã para exercer o seu poder sobre os outros, usando de violência, se preciso for. A clássica cadeia de opressão – homem, mulher, criança, cão, osso – é aqui desafiada e subvertida pela autora que não se coíbe de referir que “o humano representa a doença mortal do animal e deus a doença torturante e mortal do humano”.
É um facto incontornável que o ser humano é o mais feroz e impiedoso predador na Terra. Ao contrário dos animais, ditos irracionais, mata por prazer, destrói para enriquecer, exerce violência para poder afirmar o seu poder. Dotado de inteligência, receia a morte, e esse medo é um motor soberano, tal como a autora revela em versos como este: “Os homens da tribo movem-se em constelação: mas não é o amor ou a crença que os une. É o milagre de serem vítimas da mesma ameaça” (Poema 6).
É ainda esse temor ancestral que obriga humanos e animais a coexistirem. A relação é complexa e abarca todo o tipo de necessidades, de afectos, de ambiguidades, de interdependências, de confrontos e de mimetismos. De violência, também. No Poema 4, a frase “para grandes predadores nunca basta a presa”, revela como o desejo insaciável de domínio é igual a uma doença e representa o contrário do amor, esse sentimento avassalador que nem todos podem, ou são capazes, de experienciar.
E, no entanto, os animais são como um espelho levemente distorcido do nosso “eu” da primeira infância, do nosso “eu” puro e sem filtros nem limites, do nosso “eu” em relação ao qual mantemos, ao longo da vida, uma nostalgia dilacerante e, por vezes, um gosto amargo, conforme as experiências de cada um. Daqui, de todo este drama, emana a linguagem poética que se solta, naturalmente, em cadências diversas neste Amor Cão, levando-nos numa viagem que tem tanto de reflexão como de reivindicação e de paixão exigente.
É possível reencontrar o gosto pelo quotidiano, como no Poema 18, com a amável domesticidade do cão que desenha com o corpo as linhas de felicidade dos donos, espelhada em panquecas, flores, manhãs soalheiras, um beijo de até logo; ou descobrir as parecenças físicas e mentais que animal e dona vão adquirindo, as mesmas tristezas os mesmos pequenos ridículos sem importância. O cão pode ser, num poema, o salvador de uma mulher só ou, noutro poema, mais um adereço para aqueles que vivem da imagem, um troféu a Ser exibido ou, ainda, o companheiro de um filho amado, ou mesmo o doppelganger de quem perde a própria sombra.
Rosa Alice Branco foi buscar aos textos do zoólogo Konrad Lorenz, pai da etiologia, todas as epígrafes que precedem os poemas. Lorenz é principalmente reconhecido pelo estudo aprofundado do principio do vínculo ou “impressão”, através do qual algumas espécies formam uma ligação profunda – no caso de um animal recém-nascido, como os gansos, por exemplo – com o seu protector/dono/criador. Lorenz estava interessado nesse comportamento espontâneo, que podia ser observado num estado natural, e daí partiu para o aprofundamento das implicações deste fenómeno na teia de relacionamentos e afetividades humanas e animais. E uma questão interessante para ser tratada poeticamente e Rosa Alice Branco fá-lo com mestria e valentia, uma vez que todos nós, humanos, estamos imersos no mundo natural que nos sufoca, que nos assusta e que, também, nos abraça e envolve. Muitos de nós vivem presos a atavismos, a crenças vãs, a superstições. Espreitam-nos os lobos dos contos infantis, os chacais que se encarregam da limpeza, a fome, a escuridão das florestas, a solidão. O ser humano e o animal aproximam-se, farejam-se, dançam a roda da eterna desconfiança até chegar ao entendimento que os apazigua. Nem tudo precisa de ser luta, sangue, dor. Podem descansar no mesmo abrigo, enrolarem-se junto ao fogo, partilharem o alimento. Onde há confiança, lealdade, conforto, há amor. E enquanto o animal se deixa seduzir, o homem humaniza-se, “animalizando-se”, enternece-se, descobre paisagens insuspeitadas, no seu íntimo. Com a ajuda da Poesia, naturalmente.
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