Por ocasião da minha nomeação para o Pushcart Prize, inauguramos hoje o lugar virtual rosalicebranco.com depois de múltiplas peripécias que envolveram Carlos Quitério (a quem se devem o design do site e as maravilhosas ilustrações) e o meu filho Hugo Branco (responsável pela gestão de conteúdos).
E se é o amor à língua que está em jogo, o lançamento do meu site só faz sentido se começar com um texto que lhe faça jus. Porque – talvez saibam, ou não – eu tenho um Coração Ortográfico. Se o quiserem conhecer, podem lê-lo aqui ou no Sistema Imunitário da plataforma Viral, da qual sou co-editora.

CORAÇÃO ORTOGRÁFICO
Todas as comunidades linguísticas têm o direito a codificar, estandardizar, preservar, desenvolver e promover o seu sistema linguístico, sem interferências induzidas ou forçadas.
Artigo 9º, Declaração Universal dos Direitos Linguísticos
1. E da carne se fez verbo
As línguas são o que as nossas culturas humanas possuem de mais vivo; mas são mortais e morrem em quantidades impressionantes se não lutarmos pela sua sobrevivência; a sua morte não é um aniquilamento definitivo e algumas renascem se soubermos promovê-las.
Eu tenho um coração ortográfico. O coração é o órgão mais íntimo do cérebro, aqui em cima, onde as questões que contam se jogam, desde os tempos que o tempo não conta.
Eu e as gentes deste planeta, e de todos os planetas onde, temos um coração ortográfico. Cada aurícula e ventríloquo me fazem sentir em casa quando escrevo e falo a minha língua e as válvulas abrem-me a passagem para o círculo de amigos que são como países vizinhos, os estreitos dilatam para as línguas cuja sonoridade me é familiar, ou docemente estranha e, como em todas as viagens, saboreio o regresso a casa.
É tudo uma questão de ritmo cardíaco, quando corro ao sol a neve derrete, quando passeio dentro do mar. Uns amigos polacos, que agora habitam Portugal, procuram com desespero cogumelos no parque da cidade. Eles têm um coração de bosque no cérebro, onde a aurícula tem um cesto de cogumelos e no norte da Europa têm outro cesto para frutos silvestres e as pessoas parecem piões de um jogo de vida ou morte, entre as árvores, antes de chegarem à beira da estrada com o cesto cheio.
É assim a língua, um modo de estar, uma postura vertical no mundo, aqui onde mergulhamos no interior da casa, se um temporal. Então a casa é toda tecto, sussurra na voz materna que nos sossega, nos pega ao colo, nos protege com a solidez das paredes e desce persianas, onde antes era o vidro imaterial da transparência.
O ritmo ortográfico do meu coração sofre às vezes algumas alterações que, lentamente, se foram entretecendo no seu íntimo. O exemplo a chegar ao fim da tarde, um dia de trabalho na pele e todos os dias que antecederam este, a música do momento, o sofá relaxado, um copo ao lado: o paraíso tão pouco e tão inteiro.
É assim o coração ortográfico, é o interior de uma casa com vista: abrimos a janela para arejar a respiração com uma, e outra, e outra sonoridade escrita, que acabam por entrar na respiração colectiva. É nisto que consiste uma alteração ortográfica que vem de dentro do vivido de um povo. Os triliões de neurónios sensíveis saltam em sintonia para um novo ritmo que já andava a bailar na pele, aqui e lá, ontem e amanhã, onde ignoramos como ela se funde nas entranhas. Fora de questão qualquer cirurgia ortográfica à revelia do coração.
2. E da língua se fez pau-mandado
A CPLP, ao engendrar o torpe segundo protocolo modificativo do AO, violou sem escrúpulos o direito internacional e traiu a língua portuguesa. Não serve. Mostrou total inconsciência, incompetência, incapacidade e oportunismo na matéria.
O meu coração ortográfico foi abalado por um ataque maciço, por terroristas que nos colocam num país de nenhures, onde a minha ortografia não é, mas tem artimanhas de a imitar, dando ares de ser legitimamente melhor que a original.
Quem desencadeou este ataque não sabe nada de Interiores, nada de Arquitectura, nem da beleza de um ângulo cheio de rectidão, ou de um “c” antes de um “t”, do modo gracioso como a tradição abre as vogais ao horizonte, como se ainda estivesse a navegar e a descobrir o mundo sem nada querer em troca, porque na minha ortografia a palavra “colonização” era um fardo do passado e querem obrigar-nos a um fardo futuro, que alguns já praticam em tristes órgãos oficiais e editoriais. A língua deixa marcas de responsabilidade na página, tem um passado no coração e nunca se interroga do futuro, porque o devir será o que formos sendo no coração mais interior do cérebro.
Nem mesmo quem operou estas manobras e interferiu, e forçou a nossa identidade à c(o)lonização, pode fingir que há uma pátria mais vera do que o nosso coração igual, todo ortográfico, em picos de tónicas e depressões de átonas, às vezes assinalados por um “p” ou um “c”, por pequenas letras como guias fonemáticos, por oitavas que enriquecem a pauta.
O coração da mediocridade legislativa legisla com leis postiças, com uma foto fast food de mar colada na janela de cimento, com um trompe l’oeil que a ninguém engana.
3. E da extinção provisória faremos ressurreição
A ortografia tem um funcionamento orgânico na linguagem, à semelhança da epiderme no corpo humano; esta parece não ser de importância vital na sobrevivência, mas os maus tratos que lhe forem infligidos acabam por provocar, com a continuidade e o grau atentatório, danos gravosos que atingem a integridade do organismo sobre o qual incidem.
Se todos os nossos corações se apagarem, porque o terreno tem uma tabuleta que diz “vende-se a quem der mais, ou a quem der uma esmolinha, que a mediocridade não dá para sermos exigentes”, porque os políticos estão de mão estendida nos semáforos, o nosso coração ortográfico não terá verde para atravessar as ruas, não terá vermelho fogo da lareira, nem tecto, nem vista para o futuro.
Prescreve-se: nunca esquecer de vigiar o coração. Em caso algum (que se serve como “nenhum”), esquecer que um ataque pode deixar sequelas ortográficas em todas as idades e os corações pequeninos podem errar sem eira, por terreno baldio. Em caso nenhum (que é veementemente “nenhum”), aceitar o que, legitimamente, recusamos. Em nenhum (e nunca), cruzar os braços e esperar que a providência atravesse as válvulas com balões de oxigénio.
Se desistirmos de viver a nossa língua, enquanto o nosso coração ortográfico tenta resisir, um edema pulmonar será a única água que nos darão a beber, líquido sinovial, gangrena no músculo cardíaco. O pior é que, por mais insustentável que seja o sofrimento, sem eutanásia é pouco provável que se morra disto.