Rosa Alice Branco

Há um Lenço em Viana que Também Sabe

”Je suis le peintre portugais Amadeo de Souza-Cardoso”.

Acho que tudo o que aconteceu teve, de alguma forma, um início mais concreto com esta frase que o Amadeo disparou em 1911, ao apresentar-se, pela primeira de muitas vezes, à porta dos Delauney, na Rue des Grands Augustins nº3.

No mesmo ano, em Viana, na casa da rua da Senhora de Monserrate, eu dei a ver o meu primeiro desenho. Curiosamente, foi também em 1911 que o Zé publicou o primeiro desenho no jornal Sátira.

Havia já o amor de Lucie e Amadeo, a amizade entre este e o Eduardo Viana, e todos os factos que vão desembocar em 1915, quando o Amadeo está casado desde o ano anterior, depois de um longo amor contrariado pelos pais. Quando um exílio forçado faz o Amadeo regressar a Manhufe e os Delauney se fixam em Vila de Conde, na Villa Simultanée, depois de conhecerem em Lisboa, entre outros, O Zé e o Eduardo Viana. E claro, quando a Revista Orpheu rasga os ares portugueses com esta tempestade inusitada a arrebentar os tímpanos e as certezas. Ah, e no entanto.

Eu já tinha ido viver para o Porto. Mas não minto se disser que fiquei sempre aqui, com as imagens das procissões, das alminhas, dos arraiais, festas populares, das ceifas, da lida do mar e dos bordados. Eu própria não tinha uma consciência clara de ter guardado cá dentro uma Viana cheia de rituais religiosos ou laicos, mas tudo isto veio ainda mais claramente à luz depois da morte do Zé, sobretudo nos livros que lustrei. Mas as pessoas adoravam dizer:

– A tua pintura é igual à do Almada.

Ainda hoje me pergunto porquê. Pensariam que era o supremo elogio? Ou queriam apenas mostrar-me que quem convive com um génio só pode gatinhar à sua sombra? De qualquer modo, não aguentei a pressão. É certo que o Zé me incitava. Mas por outro lado, não suportava ver os meus pincéis e tintas a partilharem o mesmo espaço, o espaço dele, como se. Foi mais fácil dedicar-me à casa e dar como desculpa a preguiça, ou então. Talvez mais tarde eu venha a procurar saber. Era tudo muito rápido: o ritmo futurista e a dor nas entranhas dos pincéis.

Não sei exactamente o que o Amadeo contava aos Delauney na Cloiserie des Lilás, ou nas reuniões de Domingo na casa do casal. Mas é fácil imaginar que os contagiou com as gotas de luz cavalgando por entre as vagas atlânticas. E depois a guerra fez os seus refugiados.

Eu tinha pena de já não estar aqui em Viana, porque eles vinham muito com o Amadeo e, embora eu não tivesse nenhuma afeição por Sónia mais tarde em Paris, naqueles tempos adorava vê-los zingar como galgos, o riso a ecoar nas telas ao vento na praia Norte. Era fácil ver que este grupo era também uma cumplicidade de espírito na obra, na modernidade que nascia cada dia, no traço amanhecido a qualquer hora.

Espantados com a luz do Minho, outras cores começam a aparecer nas telas do casal, cores que os surpreendiam, lhes sorriam à boca e lhes amaciavam a mão. Pouco a pouco os Delaunay iam recolhendo os motivos, as cores e as texturas dos bordados, as bonecas, a cerâmica de Viana, para integrar nas suas obras que doravante terão recortes vianenses na simultaneidade simultaneísta com outras correntes praticadas (de preferência cubistas), ou a praticar em alucinante movimento futurista. Tal como dificilmente se distinguiam alguns quadros de Braque e de Picasso, a proximidade geográfica e vanguardista faz pensar em fluências mais do que em influências. Era o que pensava o Eduardo Viana a propósito do seu quadro A Revolta das Bonecas. E foi o que fez ostensivamente quando pintou K4 O quadrado Azul, dando ao quadro o mesmo nome do livro do Zé.

O K4 tem um episódio que agora não deixa de ser divertido. Foi o Amadeo quem ficou com o arranjo gráfico do livro, com o Zé hospitalizado, mas em ânsias de delírio para o ver. É que ele nunca soube ser sem superlativo. Como se pode ler carta do hospital em que diz ao Amadeo:

– K4 na máquina? Ansiosíssimo!!!!.

Tão obcecado que quando volta a escrever:

– Mas então o K4?

Atira assim sem mais, sem nada que dissesse que “K4” não era o que parecia: um código de guerra. Esta frase lacónica fez o Viana e os Delauney irem parar à enxovia. E o Eduardo ainda esteve para uns 15 dias.

A Sofia adorava as camarinhas. Dizia que nunca poderia pintar aquela cor diáfana, por isso era melhor comê-la. Talvez fosse ela quem mais se expandia numa linguagem de sabores e sons do Minho, da tactilidade dos objectos com a sua forma que vinha da tradição e se transformava em futuro.

Eu parecia apenas uma miúda quieta que bordava sentada no muro. Era um testemunho invisível a sentir com a aragem do mar o que o Modernismo prometia. Mesmo na província se não escapava a um espírito de frescura e de ousadia que atraía uns, apavorava e enervava outros. Era fácil para mim sonhar com um mundo de que entrevia apenas contornos ténues, mas que amava já de longe, num movimento que me projectaria para Paris e para Lisboa com as suas tertúlias das 6 da tarde na Brasileira.

Foi lá que conheci formalmente o José. É certo que ele já me tinha perseguido até ao São Luiz. Mas nesse tempo uma mulher não falava assim ao futuro marido, não porque o não soubesse então (que o não sabia), mas porque era assim. Tão pouco sabia ainda que havia deixar de pintar e que seria preciso a morte do Zé para voltar os meus olhos para o azul do mar de Viana, as festas e as procissões que ilustrariam tantos livros de crianças.

Quando deixei de pintar, todos estes temas das alminhas e das procissões passaram para os meus bordados. E o José disse-me que era um bom caminho. Foi daí que, naturalmente, acabou por vir a fase mais conhecida da minha pintura. E ele nunca chegou a saber, pelo menos nesta vida.

Mas eu ainda estou sentada a bordar num muro da praia Norte onde às vezes tinha a sorte de me cruzar com o Amadeo e os Delauney. Ainda em 1915, quando eles aqueciam o exílio com as cores do Minho. Houve um dia em que pareciam graves e tristes. Começaram a subida ao Monte, como aconteceu algumas vezes. Acho que não iam por devoção ao Sagrado Coração de Jesus. O edifício no cimo de Santa Luzia ainda estava por terminar. Teria de esperar pelo fim da 1ª guerra e pelo início da pneumónica que matou milhares e não esqueceu o Amadeo, só com 30 anos de idade.

Mas segundo as vozes de Viana, nessa noite não desceram. Foi pouco depois da aurora que Sónia apareceu cá em baixo. Vinha como se não tivesse peso, com um corpo de bruma e um rosto roubado de expressões. O Amadeo e o Delauney vieram só horas depois, em silêncio.

Havia vendedeiras na praia Norte. Nesse dia eu não estava lá, mas esta subida a Santa Luzia ficou sempre no meu imaginário. Sonhava que partia em busca dos trabalhos que desenvolveram logo depois dessa data. Que vasculhei, invadi, visitei. Que não foi fácil, mas com as imagens diante dos meus olhos, pude enfim perceber. E continuei sempre a sonhar com o que poderia ter acontecido naquela subida a Santa Luzia.

Embora eu tenha sempre dito que arrumei a minha tralha da pintura em Moledo quando decidi acabar com tudo, a chorar todo o dia, inventei este episódio para escapar à verdade. Porque as pessoas sempre tentaram escavar a nossa vida. E eu adoptava a postura mais simplista que sabia para me deixarem tranquila. De resto, era o Zé o grande génio, era a ele que procuravam. Depois da sua morte não paravam de me pedir depoimentos, ou mesmo coscuvilhices da nossa intimidade. Mas há uma parte de nós que temos de salvaguardar a todo o custo, enquanto dizemos umas quantas coisas para encher os ouvidos ávidos que nos sugam.

Dessa vez em Moledo deixei vir à tona todas as contradições. Por um lado, o meu amor à pintura, aos ensinamentos do meu mestre Columbano e às esperanças que em mim depositou e, por outro, o temor do confronto com a arte do Zé e, porque não dizer, com a oscilação entre o egocentrismo dele e o remorso de saber que a sua força desmedida me despojava de uma parte imprescindível de mim, tive de acabar de vez com esta agonia continuada. O José não se apropriava do meu espaço de forma consciente. Mas a sua força, a sua genialidade expansiva e a gente que nos rondava, iam-me sonegando a coragem de ser menor. O Zé ficou tão aliviado quando me virei para os bordados com os motivos da minha infância em Viana, impulsionou-me tanto, que era como se confessasse e exorcizasse os remorsos que sentia pelo que ele próprio era, e por aquilo em que me tornei.

Sim, nessa altura havia alguma tensão na nossa vida. No célebre dia que ficou ligado a Moledo, tínhamos saído muito cedo. Eu tinha mostrado vontade de ir a Viana e subir ao Monte com ele. Devia haver no meu rosto qualquer coisa que o José ainda não tinha visto ou pintado. A manhã era de neblina e eu própria, ao subir, tinha os pensamentos enevoados. Ao mesmo tempo que ia tomar uma decisão que abalava tudo o que eu tinha sido e queria ser, a minha imaginação convocava o Amadeo e os Delauney naquela mesma subida tantos anos atrás, mas ainda não passados, nem desvanecidos. Sentia-nos também a nós como duas figuras misteriosas em trânsito para um acontecimento decisivo. E talvez por isso, ou porque as decisões são murros no estômago, assim foi.

Nunca contei a ninguém o que aconteceu lá em cima. Nunca contarei.

Mas como em todas as belas histórias, também Sarah Affonso não resistiu a deixar ao menos uma pista: uma pista bem protegida. Confesso hoje que há um lenço bordado, só um lenço em Viana que também sabe o que eu já não sei.

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