Há uma beleza inaudita na acção mais insignificante
Tzvetan Todorov
Este livro é uma pequena obra-prima. Apetece escrever dele sem parar, ou fruir o quieto ofício do silêncio para ouvir respirar a voz do sapateiro, a voz das suas mãos diligentes a banharem os sentires com pequenas vagas arrebatadoras.
Os últimos livros de Pedro Tamen não deixavam vislumbrar a luz fora da cave: como se cada poema fosse fundador, mas de uma morte vaticinada e já vivida de modo peremptório. Morte tantas vezes repetida que perdia o sem sentido, em favor de uma espécie de indiferença, que era mais a inércia com que escrevia dentro dela. Talvez, por isso, a memória que atravessa os poemas, num registo constitutivo, se dá como instrumento compulsivo de reanimação. Mas, em última análise, a memória sublinha ainda a morte, já que é quase memória sem objecto que valha a pena reter.
Além de O livro do sapateiro abrir novos trilhos, dos quais gostaria de salientar alguns aspectos, os próprios registos de continuidade ganham novas tonalidades. É aliciante pensar o estatuto do sujeito, a proposta narrativa, o primado do absorvimento, o ofício como co-criação, a instância rítmica, a passagem do registo da memória para o da actualidade, a valoração da acção insignificante, o pacto do sujeito poético com o mundo. Todos estes aspectos são possibilitados pelo aparecimento de um operador tímido, mas potente: a pequena abertura, na figura do janelo que desvela o mundo.
Dando continuidade aos registos da exiguidade e humildade, presentes em livros anteriores, como Analogia e Dedos, dentro daqueles dois termos nasce a novidade da fresta. A fresta, na sua estreiteza pobre é, pois, o operador de passagem do mundo para a casa e da casa para o mundo: E assim a minha mão vai ao centro do mundo/ e o mundo frequentemente me responde (…) Não sei agradecer a mercê deste comércio/ entre mão e mundo. Este poema de cariz leibniziano é exemplar, no sentido em que, o livro que Pedro Tamen nos oferece se insere na fenomenologia do habitar, constituindo-se como poética do espaço mínimo, donde brotam horizontes insuspeitados. Pense-se no papel dos estreitos e passagens no livro A passagem do Noroeste, de Michel Serres.
Encerrado na cave onde o mundo se sonha através de uma fresta, podemos dizer que, de certa forma, o sapateiro habita a caverna de Platão, se retirarmos a esta a componente fortemente alegórica. Não é o próprio mundo, no sentido usual, que o sapateiro vê, mas aquilo que percepciona não é, de modo algum, um feixe de sombras. O mundo vem naturar-se nas mãos do sapateiro, através de indícios sensíveis de uma realidade não sujeita a suspeição, já que o mundo é também interpelado e age em consequência: Já são os dedos mesmo que assim se transfiguram, /se intrometem no mundo e o fazem falar. Enquanto a mão pacienta na matéria do ofício, os indícios acorrem, oriundos de um pedaço de pele, um prego, uma tacha, um bocado de metal: Esta perna invertida/ de ferro já vivido/ que me serve de forma/ onde o sapato assenta,/ exala sons de mar, ventos canaviais.
Em O livro do sapateiro, os poemas parecem seguir um fio narrativo na primeira pessoa, em que o sapateiro se enuncia no ofício que o enuncia. Porém, o primeiro poema aparece como uma sublime declaração de intenções, escrito de mãos dadas em clave de nós: iremos procurar a razão da giesta/a razão do amarelo/iremos procurar a razão/iremos procurar/e os olhos tomarão todas as cores/as cores de tudo e, contrariamente a todos os outros, este poema acaba sem qualquer pontuação, deixando a abertura solar do futuro verbal. De facto, o sapateiro não narra: Acocorado como estava o escriba, / só não escrevendo, mas escravo sou/ da matéria animal que do distante campo/ veio curtida com ecos de verdura. O sapateiro apenas é tudo o que vai sendo, no ofício paciente que o presenteia com lágrimas, e com súbitas visitas da primavera, que o obrigam, simultaneamente, a viver a medição do tempo [Que te prometo eu, ó pele (…) Que posso eu prometer-te(…) Não posso eu prometer-te o que não seja/o estar aqui enquanto me for dado] e a ousadia de se desmedir, como no final do poema, em que o mundo “rasga as paredes” da cave, ou em outro poema: E no entanto chega a luz,/ uma estranha, inesperada luz,/ à catacumba onde estou vivo/por força destas mãos. E este chamamento para a vida é inescapável e orgânico: Fecho os olhos e os campos reverdecem.
A exiguidade existe, mas agora, não para ser desvalorizada e menosprezada. Quanto mais o sapateiro está concentrado na sua realidade tangível, mais ela volve a própria substância do mundo e do seu habitar. O sapateiro tem inscrito nas suas mãos, em cada nó, ruga, aspereza, a acção doadora de ser e beleza, tal como é dito no primeiro verso deste poema: vou dando forma aformoseio.
Podemos imaginar que este livro estaria também no âmbito da Ekphrasis, em que Pedro Tamen escreveria Depois de ver uma série de quadros de Vermeer, tendo por objecto o ofício do sapateiro. De facto, assistimos ao primado do absorvimento na acção, em que a personagem inteiramente tomada por ela. Mais tarde, Diderot irá condenar e repudiar qualquer quadro que não cumpra as leis do absorvimento, ainda de acordo com a concepção aristotélica que valoriza a tragédia, no sentido em que esta imita a acção e a acção transmite a nobreza do homem. Ora, o sapateiro cosido ao seu ofício é a incarnação perfeita desta nobreza do homem em acto. E o sapateiro está vivo, exactamente, em virtude do ofício. Só este opera o contacto com o mundo, entre o que foi e a transfiguração do que será, entre a pele do animal e a alegria de quem calçará o objecto do ofício, a mesma alegria que calça o coração do sapateiro: e sinos, sinos voando/ numa manhã de domingo. O sapateiro trabalha ao rés do solo um objecto que rasa o chão, mas diante do sapato, o sapateiro voa pelo pé de quem o calçar: ó meu sapato de milho,/de juventude virada/para um pé ao pé da mão,.
O papel do ofício é muito mais do que doador de vida por força da paciência das mãos: é formador, no registo de concomitância que perpassa todo o livro. Assim, a cumplicidade ontológica entre o sujeito e o objecto que este cria, e pelo qual se cria, está bem patente nestes versos: este banco no escuro em que te faço/e assim me vou fazendo.
Deste modo, vemos que a acção possui também o poder de formação: E a minha profissão faz do sapato/acto. A acção possui a suprema nobreza de ser doadora de identidade à coisa feita, enquanto, simultaneamente, doa a mesma identidade ao sujeito da acção. E esta identidade toma aqui um valor superlativo, por se descentrar das malhas do eu e, diversamente, usufruir de um carácter dialógico: E já não sei qual mais minha:/ se a boca se o meu puxar.
O poeta, ao inscrever o corpo na maneira do sapateiro, urde uma outra cumplicidade, agora rítmica. O ritmo apresenta apenas uma pequena variação em relação à fluidez dos livros anteriores. Aqui, as palavras brincam com as palavras que lhes estão próximas e urdem uma intimidade através da analogia que as ritma. O deslizamento dos sons adequa-se aos ritmos do sapateiro exercendo o ofício, como as palavras onomatopaicas são escritas pelos sons que as urdem. Não especialmente, ou intencionalmente, mas porque neste livro nada foge à harmonia, sendo a harmonia a relação inteiramente congruente que nenhuma dissonância perturba.
Percebe-se agora que não haja aqui lugar para a memória, porque o sapato, nas mãos do sapateiro, transforma qualquer tempo em tempo actual, à maneira de Alfred Witehead, em que todos os tempos não sendo discretos, não podem ser diacrónicos, mas coexistentes. A continuidade da acção aloja, assim, uma mundividência, pois que a mão do sapateiro é intensional, no sentido husserliano.
É um livro comovente de aceitação trémula e agradecida pelo “sal do pão”, na lucidez da sua contingência; de deslumbramento incrédulo: Quando já quase não vejo/ quem me poderá ver?. O livro do sapateiro inicia-se na procura da giesta e é-nos grato ler num outro poema: o sapateiro, em horas inundadas,/ recupera nos olhos a giesta.
E também nós, absorvidos no ofício de leitores, “iremos procurar”, para recuperamos os olhos da Poesia.
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