Rosa Alice Branco

O Poema de Pedra

A primeira coisa que me veio à cabeça, quando me propuseram este tema, foi a extraordinária dissertação de Victor Hugo sobre a arquitectura como o grande livro da humanidade, em que o escritor desenvolve uma reflexão grandiosa, delirante e lúcida, num estilo fascinante, acerca dos primórdios, do desenrolar, e da morte do grande poema da humanidade. Ao falar da arquitectura como arte soberana, Victor Hugo declara, com veemência bem expressa, que toda a história dos homens, durante muito tempo, se pôde ler nesta Arte Mãe feita de pedra.

Ao descrever a criação do grande poema de pedra, Victor Hugo, afirma que, como toda a escrita, a arquitectura se iniciou com letras, ou seja, o homem começou por aprender o alfabeto das pedras. Primeiro, tal como uma árvore, ou uma montanha, lançou do solo para o infinito, uma letra de pedra: o menir. «E cada letra era um hieróglifo, e sobre cada hieróglifo repousava um grupo de ideias, como o capitel sobre a coluna» . Depois juntaram-se sílabas, compuseram-se palavras com sílabas de granito, umas sobre as outras, como os cromeleques e os dólmenes, «o verbo foi experimentando algumas combinações» e construíram-se frases feitas de pedra. Mas o imaginário do homem foi enriquecendo tanto e o simbólico tornou-se tão complexo que se sentiu, imperiosa, a necessidade da criação de livros que pudessem conter a desmedida dos símbolos.

Neste sentido Victor Hugo escreve:
Enquanto que Dédalo que é a força, media, enquanto que Orfeu que é a inteligência, cantava, o pilar que é uma letra, a arcada que é uma sílaba, a pirâmide que é uma palavra, postos em movimento, simultaneamente por uma lei de geometria e por uma lei de poesia, agrupavam-se, combinavam-se, amalgamavam-se, desciam, subiam, justapunham-se no solo, sobrepunham-se no céu, até terem escrito sob o ditame de uma época, estes livros maravilhosos, que eram também edifícios maravilhosos.

Foram-se, pois, fazendo livros, com os símbolos que cresciam e se complicavam, até necessitarem de um edifício que pouco evocava a pedra nua do alfabeto. Em todos os tempos, as várias raças escreveram linhas, mudaram de página, nesse grande livro inviolável da humanidade, feito da matéria mais durável – a pedra. Às vezes combinavam-se, subindo ao céu, até terem escrito livros grandiosos como o templo de Salomão , livros escritos sob a ideia geral de uma época. Mas Victor Hugo sublinha que as cidades que, como Paris, eram uma autêntica crónica de pedra, vão ficando ilegíveis. A cidade deixa de ter uma fisionomia geral. Cresce em casas de todos os géneros, apagando o próprio significado da arquitectura.

 
SONORIDADE DAS PEDRAS

Se, como nos diz Victor Hugo, a Poesia se constrói a partir da composição cada vez mais complexa das pedras, não lhe cabe, nesta obra, falar das diferentes variáveis, como a escolha delas, a forma como se procuram umas às outras para se encaixarem, de modo a ficarem íntimas e, às vezes, a harmonia surpreendentemente dissonante que desvelam.

Se eu escrevo poemas é, antes de mais, porque amo as palavras, o timbre delas, o modo como me tocam, separadas, e o modo inusitado como tudo isto muda quando as palavras se juntam em versos e quando, verso a verso, pedra a pedra, todas se conjugam no poema. Cada poeta tem um estilo de que o ritmo é variável fundante. E um poema só tem as pedras todas no lugar quando nada foge ao ritmo do corpo debruçado à janela das palavras.

Usualmente, e dependendo do poema, não ficamos apenas no fascínio do som, das sonoridades, mas buscamos, também, o encantamento da relação com o sentido. Embora não com a mesma evidência das onomatopaicas, há palavras em que o som e o sentido seguem o mesmo caminho, como “agulha” e “aguilhão”. Esta convergência sente-se também nas palavras leves como “ar”, nas palavras duras como “breu”, “bruto”, “degredo”, nas palavras suaves como “alada”, “álea”,“azul”. Há palavras que divergem entre o som e o sentido: a palavra silenciosa como “urde” nada diz do seu sentido, assim como a palavra, que só difere desta por um fonema – “urze-ze”, nos toca com um zumbido mágico que pode evocar muitas coisas. E há palavras em que a relação entre o som e o sentido parece contraditória, como “dolo” e “troglodita”.

Quando era muito pequena já amava a palavra “ciciar” e repetia-a quando me sentia desamparada, mas também quando me sentia feliz, porque “ciciar” é o silêncio a dizer “sim”. Gosto de pensar que, para Sophia de Mello Breyner, dançar se escreve “dansar”, porque o “s” é uma letra bailarina. E há palavras que parecem não acabar, como a palavra “esquecimento”. Sempre pensei que em português parecia que era muito mais longo esquecer do que em espanhol – olvido – e, sobretudo, do que em francês – oubli. Mas, simultaneamente, “es-que-ci-men-to” dá ideia do processo progressivo de um fenómeno que se vai dissolvendo até desaparecer no “to”, nesta sílaba que, ao fechar um ciclo, se torna definitivamente muda.

E é em razão da língua e da linguagem oferecerem possibilidades e desafios viciantes que nós vamos erguendo as pedras, as colunas, as paredes, que vamos trabalhando para com elas construirmos casas.

 
O SENTIDO DAS PEDRAS

As casas só o são, porque todos os poemas acabam por verter sentido, constituindo-se este como uma pluralidade de sentidos em energia, seja esta sinergia, ou dianergia.

E, por isso, amar as palavras pode ser complicado e mesmo mortal. Antes do 25 de Abril, as pedras do poema tinham de ser dispostas de tal modo que o cimento armadilhasse o sistema, que as pedras se esboroassem para deixar entrar o ar, e entre elas houvesse um buraco suficientemente amplo para se respirar e fingir que o poema não falava de ditadura e de liberdade. Durante esse tempo em que o poema era escrito nas entrelinhas – que não eram mais do que a porosidade das pedras -, havia palavras proibidas que nem podíamos sussurrar e as palavras belas que nos restavam, porque pareciam inocentes ao sistema, estavam poluídas.

Se gosto, particularmente, do escritor franco-croata Radovan Ivsic, é em virtude dos seus textos, mas sinto-me próxima dele, porque Ivsic fala da inocência com que amava as palavras, faz-nos escutar a sonoridade de cada uma em croata, e conta como elas se modificaram pela ditadura. Foi sempre isto que eu senti na terra a que o meu pai chamava “cidade salgada”. E, talvez por ter nascido entre o mar e os pescadores, sempre gostei das palavras de mar, porque foi nessas palavras que nasci: água, sal, espuma, camarinhas, duna, rocha, onda, areia. Mas a ditadura sujava as palavras que antes eram livres e a palavra “on-da” não se enrolava selvagem nos meus lábios e a palavra “espuma” não podia rebentar neles. A nossa boca policiava o que nos ia na alma e então dizíamos umas palavras em vez das outras, e assim se escrevia nas “entre-linhas”.

É por esta inocência que esvoaça entre o som e o sentido que António Ramos Rosa pode falar de um cavalo que é cada partícula, e todo o universo, sem que a palavra “cavalo” perca a sua força para a metáfora. O cavalo é sempre cavalo, e tudo o que for dito ser. E continua a dizê-lo com a crina escrita no vento do poema e com o corpo veloz, ondulante, de mulher. E em Eugénio de Andrade as palavras são pedras de palavras brancas. Se Ramos Rosa construiu palácios fulgurantes que são a doçura das florestas, Eugénio construiu casas de casas em casas, rentes ao chão, que são a limpidez e a intimidade da pedra.

 
A HERANÇA DAS PEDRAS

Cada obra, cada poema, cada casa única foi erguida sobre um terreno antigo, onde muitas casas foram belissimamente construídas antes da nossa. E todas as casas antes de nós são o alicerce para esta que nos cria, à medida que a vamos construindo.

O poema surge de uma comunidade anterior, porque tudo o que lemos e escrevemos se vai tornando a biografia das nossas células, muito antes de que elas se unam para formar frases, arcadas, abóbadas de pedra, traves sólidas de madeira.

Antes de começarmos a escrever e a publicar, e depois, antes que o poema e o livro estejam terminados, há um tempo em que as sílabas hesitam e discutem sem cessar. É um tempo em que as cidades são invadidas e as paredes postas abaixo. Mas não é a barbárie que toma conta da cidade. São os alicerces que acorrem a fundar-nos, e as janelas que se escancaram em horizontes possíveis, para que com eles possamos erguer o impossível.

Assim, pedra a pedra, as pedras juntam-se para formar a casa do nosso ser mais íntimo que estendemos sobre a mesa, onde a poesia nos vai escrevendo sem tréguas.

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