Rosa Alice Branco

Operação cirúrgica e cirurgia plástica

O corpo na poética de Luís Miguel Nava e de David Mourão-Ferreira

Se o velho sonho de encontrar o elixir da eterna juventude não pôde realizar-se, o homem criou, pelo menos, a cirurgia plástica, para esconjurar o feio. É também chamada cirurgia estética, já que o seu objectivo é um acréscimo de beleza e se orienta no sentido de constituir um trabalho regenerador.

Por outro lado, quando nos referimos a uma operação cirúrgica não estamos, grosso modo, a pensar numa operação estética. O que temos em mente é a incisão, a extirpação do mal e a cicatriz que assinalará o local do feito – o local através do qual se processou o trabalho regenerador no interior do corpo, e que, doravante, ficará assinalado à superfície. Na operação cirúrgica, à incisão corresponde a destruição da gestalt do corpo, i.e., do corpo enquanto totalidade que é propiciada pela pele como elemento elástico de conexão, desconectado agora pela acção do bisturi que, em 1º lugar, corta (faz a incisão), em segundo abre, escancara, revela e, em 3º, expõe a nossa intimidade, antes protegida pela pele. Agora, o interior é exteriorizado, o profundo vem à superfície e a identidade do corpo vê-se devassada pelo despudor do bisturi, vê-se perturbada no mais essencial que é, justamente, a integridade do corpo.

Embora o médico seja movido por princípios de ordem profissional e não do foro do crime, a sua prática deverá ser intencional e não acidental. Mas, em todos estes casos, a integridade corporal é aniquilada em virtude de uma incisão que chega mesmo a expor o que temos de mais escondido sob a pele: as entranhas.

Esta operação pode ser uma operação do olhar, já que também o olhar detém o poder de ferir, atravessar, de trazer ao impudor da superfície descoberta os seus aspectos mais íntimos. É assim a poética de Luís Miguel Nava: um olhar anatómico, penetrante, no seu sentido de perfuração corporal.

Pelo contrário, o olhar de um poeta que tem sido considerado «o poeta do corpo» – David Mourão-Ferreira, é um olhar que (por pudor estritamente estético-amoroso) só contempla a superfície e vê sempre o corpo como pele, invólucro de um todo delicado, em que os órgãos só são referidos como esculturas belíssimas que se destacam da harmonia do todo:

Desce dos teus cabelos dissolve-se nos ombros

ressuscita no ventre bifurca-se nas coxas .. 1

Assim, na poética de Nava, a desfiguração do corpo é, primariamente, uma ruptura da totalidade do corpo, pelo que a totalidade cede lugar ao fragmento.

No livro O Céu sob as Entranhas, no poema «Estacas» podemos ler:

Os meus ossos estão espetados no deserto, não há um só no meu corpo que lhe escape./ Cravados todos eles na areia do deserto, uns a seguir aos outros, alinhados /Seria absurdo falar-se de esqueleto…

Podemos, por exemplo, encontrar este espaçamento progressivo num texto intitulado «Corpo espacejado»:

As várias partes de que só por abstracção se chegava à noção de um todo começavam a afastar-se umas das outras…

Mas mesmo esta abstracção vai-se tornando cada vez mais abstracta, porque o espaçamento entre os órgãos vai produzindo um afastamento, um hiato de tal modo que a solidariedade dos ossos desaparece até à solidão de cada fragmento. Nava pode então escrever em O Céu sob as Entranhas:

Um osso é uma raiz no caos.

Uma raiz na solidão.

Num poema de Vulcão, já nem mesmo enquanto raiz as vísceras se constituem:

As vísceras,

pintadas e nostálgicas

de serem uma raiz,

O que poderá significar a nostalgia de ser uma raiz? Por um lado, de estarem enraizadas e não desenraizadas. Por outro, de constituírem um todo e não fragmentos dispersos para a história de um corpo avulso.

Se pensarmos agora o corpo evocado pela escrita poética de David Mourão-Ferreira, à luz da noção de totalidade, não encontramos desfiguração, mas pelo contrário, podemos mesmo falar em transfiguração, que encontra nesta poética toda a dimensão de trabalho redentor. O corpo purifica-se no sentido em que, sendo forma, é sem medida, sem limite e ainda que dele nos seja dado contemplar apenas um fragmento, este nunca é parte de um todo, porque é, por vocação, um universo. Assim, e de acordo com o significado atribuído a estes termos por Nietzsche, podemos pensar o corpo poético como Apolo contemplado por Dionisos: o olhar sai de si, desmedido, para na escrita criar a contenção perfeita

Orquestra, flor e corpo:

doravante direi

como do corpo a música se extrai,

como sem corpo a flor não tem perfume,

como de corpo a corpo o som se repercute.

…E o mundo só é mundo enquanto houver corpo,

de música e de flor universal medida.

Através da transfiguração, o corpo carnal natura-se, atingindo a plenitude da forma no pormenor do joelho, na perna, no ombro, no poro, atingido o corpo a sua infinita materialidade, que é também a sua infinita espiritualidade, e que o torna infinitamente desejável. Por isso a visão do corpo poético aspira sempre ao táctil; pertence à modalidade do contacto. Como escreve David Mourão-Fereira:

A palavra e a pele / em uníssono pedem / que lhes pegue

e ainda, revelando uma dimensão de desejo tão infinita que, mesmo o acto de tocar, se revela insuficiente:

Que dizer do pescoço, às vezes mármore, /às vezes linho, lago, tronco de árvore, / nuvem ou ave, ao tacto sempre pouco…?

Esta proximidade táctil é a todo o momento compensada por um filtro que não deixa o corpo exposto à imperfeição da excessiva proximidade. É também, pois, a perfeição do olhar que determina a perfeição do corpo, pelo que o olhar transfigurador ao criar o lugar privilegiado para contemplar, cria, por este mesmo movimento, o corpo poético.

Pelo contrário, na poesia de Luís Miguel Nava o movimento consiste, exactamente, em aproximar de tal modo o corpo do olhar, que doravante só é possível uma visão parcelar que reduz o todo a imagens fragmentadas. Assim tratado como objecto, o corpo evocado pela escrita despoja-se da sua espiritualidade. O olhar é aqui desfigurador porque irremediavelmente próximo (ou à distância, mas como se estivesse próximo por meio de uma poderosa lente de ampliação). Talvez esta distância tão próxima seja também tão íntima que não se pode ser observador sem se tomar simultaneamente observado. A desfiguração atinge, assim, o sujeito poético e a ferida aberta propaga-se ao espírito, ou talvez aconteça exactamente o contrário: é a desfiguração do espírito que contagia o corpo e se estende à pele.

Em Vulcão podemos ler:

O réptil de que somos as entranhas / abertas na consciência / emerge-nos da terra…

De facto, a desfiguração, a fragmentação do corpo, é sobretudo no espírito que reside, como podemos sentir pela leitura de um poema de O Céu sob as Entranhas:

A roupa dói-nos porque, embora

nos cubra a pele, é dentro

do espírito que estão os tecidos amarrados.

Há no espírito uma «cegueira dos tecidos» – eis o insustentável, eis a razão pela qual o corpo se des(-)natura.

Erwin Straus evidencia a transformação da comunicação operada pela palpação médica, em que o corpo-objecto é sujeito a uma exploração manual, apresentando e abandonando ao médico o corpo nu. A natureza radical desta transformação é, segundo o autor, posta em relevo na cirurgia em que o médico procede à incisão dolorosa, por um motivo estritamente profissional que, em princípio, tem como objectivo a cura do paciente. Como Erwin Straus não deixa de notar, a modificação não afecta apenas o modo de comunicação, mas implica sempre uma modificação nos sujeitos.2

Assim, na poesia de Luís Miguel Nava o corpo é o que resta de uma cirurgia que permite o acesso ao interior, mas justamente, esta é uma operação de irradicação da interioridade: tornar aqui visível o interior corresponde a expô-lo, torná-lo duplamente exterior: visível e descoberto. Em O Céu sobre as Entranhas o próprio Nava tematiza a relação entre exterior e interior, associando a escuridão do quarto à escuridão das entranhas:

Agradou-lhe a ideia de que, através desse simples gesto, pudesse homogeneizar o exterior e o interior

e ainda:

graças à assimilação que essas mesmas trevas haviam produzido entre o interior e exterior,..

Na poética de David Mourão-Ferreira, a pele é um invólucro totalizante que se amplia no amor como um manto estendido:

Quem foi que à tua pele conferiu esse papel / que mais que tua pele ser pele da minha pele

Em Luís Miguel Nava a pele deixa de ser o invólucro totalizante que evidencia a gestalt corporal para tomar mesmo, por vezes, o lugar interior, afundado, soterrado. Como se não bastasse, a pele, agora afundada, é ainda sujeita a uma ferida suplementar: no poema «Estacas» é dito:

A pele foi entretanto soterrada, há quem já tenha caminhado em cima dela.

No limite, o olhar que desfigura o corpo em objecto seria também abjecto no sentido proposto por Julia Kristeva, do entre-deux, do ambíguo, do misto, daquilo que «perturba uma identidade, um sistema, uma ordem» e em que a parte esvaziada de toda a vida perde o contorno e é arrastada para o peso do sem sentido. 3

Encontramos esta ideia de pulverização do corpo pelo olhar em Fragmentos de um Discurso Amoroso de Roland Barthes: as partes do corpo são examinadas como se desmontássemos um objecto para ver como é feito por dentro. O olhar que observa é frio, calmo, distante; é o olhar de quem olha sem medo para um insecto. Às vezes basta um movimento no corpo do outro e «o meu desejo deixa de ser perverso, torna-se imaginário, regresso a uma Imagem, a um Todo: amo novamente»4.

A imagem do insecto aparece, no mesmo contexto, na Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty, como originada por um olhar inumano.5 Como se, fosse a que distância fosse, a insustentável proximidade do olhar do outro operasse uma distorção inevitável no corpo olhado, incapacitando-o de se dar a ver como gestalt e desvelar a diferença de cada mínimo detalhe.

Vê-se pois que, por um lado, o olhar cerrado, o olhar míope, possui uma maior apetência para tornar abjecto o objecto olhado. Por outro, o corpo transfigurado pela escrita poética é também um corpo ritual; escreve David:

Na penumbra do teu corpo é que tudo começa..

Se assim é, concomitantemente a transfiguração do olhar deve, olhando, descobrir como se encobrisse. Deste modo, o trabalho poético de transfiguração procede a um jogo entre o perto e o longe (dimensão espacial e temporal do corpo), e é mercê deste jogo que nunca chega a deflagrar a impureza microscópica, pois em nenhum momento se perde a imagem, o que significa que nunca a figurabilidade do pormenor anula a figurabilidade do todo:

Como os teus ombros ontem estavam longe,

como os teus seios hoje ficam perto!

O desejo é uma lente que te acerca,

a ternura é um filtro que te esconde…

Então, não são tanto os movimentos do olhar que são determinados pela relação entre o próximo e o distante, mas a própria relação entre proximidade e distanciação é que é determinada pelo sentimento que desencadeia o olhar, pelo desejo e pela ternura, pela indiferença, ou pelo sofrimento. Por exemplo, o desejo determina uma orientação para a proximidade que, em David Mourão-Ferreira aparece como equilibrado pelo movimento de velação. A figura da lente, cuja função é de acercar aparece pois em David contrabalançada pela figura do filtro da ternura, pelo que o olhar deve revelar como se escondesse. Em Luís Miguel Nava não existe véu ou filtro, mas apenas uma obsessiva lente de aumento, de aproximação progressiva, pelo que as «paisagens» do corpo se desintegram no próprio acto de olhar:

…..Paisagens / às quais a nossa pele serve de lente / estão feitas com ele, que as desintegra.

Assim, se o corpo em Nava é sempre menos do que corpo, na poética de David o corpo é sempre mais do que corpo:

…Nem todo o corpo é carne: / é também água, terra, vento, fogo /…/ pois no teu corpo existe o mundo todo!

O processo de desfiguração do corpo na poética de Luís Miguel Nava é-nos revelado pelo poeta ao escrever:

A nossa anatomia é uma terra enigmática e longínqua sob cujo mapa jamais pensámos debruçar-nos.

Ora a poética de Nava é a propria operação cirúrgica em que se faz, justamente, aquilo que ele diz jamais ter pensado fazer: debruça-se sob o mapa da anatomia escavando a própria intimidade, já que o órgão mais íntimo é, exactamente, a pele; assim. O a frase «sentir na pele» ganha aqui todo o relevo.

Mas onde pode agora residir o eu, se o corpo e o espírito são apenas fragmentos pulverizados? A resposta de Nava é que não existe tal lugar. No poema «O último reduto» podemos ler

Naquilo a que chamamos eu há sempre um espaço inocupado,..

É que dentro de nós existe um mecanismo cuja função é repelir-nos, escorraçar-nos e frequentemente «ocupa toda a nossa identidade». Então, esta abolição do eu que é escorraçado para fora de si próprio provoca uma idêntica abolição da identidade do corpo e como a identidade essencial do corpo reside na sua organicidade desfazem-se as envolvências e os órgãos dispersam-se como se fossem elementos inorgânicos.

Podemos agora saber porque é que Luís Miguel Nava se debruçou sob o mapa anatómico: é que não bastava despir-se, desnudar-se, porque a pele não deixa que fiquemos verdadeiramente a nu. Como escreve em Rebentação:

Desnudarmo-nos é pouco, há que mostrar as vísceras,…

Lembremo-nos de que, sistematicamente, ao longo da sua obra incompleta, encontramos afundados e mesmo perfeitamente soterrados, tanto a pele – o elemento do nosso corpo que serve de charneira entre o interior e o exterior, mas que significa a nossa exterioridade – como os elementos mais marcantes de uma cosmologia: o céu, o sol, o mar. Assim, as próprias vísceras são iluminadas, na condição de serem expostas:

…expor todas as vísceras, os orgãos sobre os quais a luz do coração incide,

Escondido, afundado no interior do corpo, há um outro mundo análogo ao que é objecto do nosso olhar; em «Neste mundo», o próprio olhar é subterrâneo:

O sol subterrâneo, aquele a que eu / me quero hoje estender / é o do meu espírito, é preciso / cavar bem fundo até o fazer surgir.

E acerca do céu escreve Luís Miguel Nava:

O céu, agrada-me pensar que é a memória de dois ou três amigos,

Porém, é no poema «Retrato», em O Céu sob as Entranhas que ficamos a saber o papel essencial que cabe à pequena e solitária pele, uma pele tímida e metida consigo mesma, lá no fundo de si; o seu papel é:

ir imitando o céu assim como podia.

No próprio seio das trevas, das entranhas, há pois um céu. Para ter acesso a essa luz é necessário proceder à incisão mais dolorosa, abrir a ferida. Poderá, assim, a pele ir imitando o céu na medida da sua humana (im)perfeição.

Todo o percurso que até aqui tinha sido pensado como trabalho desfigurador aparece a esta luz como um trabalho redentor em que assistimos à mais espantosa, e também a mais profunda, transfiguração: escavar uma luz no abismo das trevas.

Podemos agora dizer que na poética de Nava o corpo é, sobretudo, muito mais do que corpo: é um mundo todo. E então, como David Mourão-Fereira, diremos a Luís Miguel Nava:

pois no teu corpo existe o mundo todo.

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