Quem vem de fora diz que temos a mania dos cafés. Mas depressa percebem que tudo que importa acontece entre o calor das chávenas e o bordejo das palavras. O café é a casa que nos acolhe sem esperar de nós o que quer que seja, a não ser o pequeno consumo habitual. Já nem é preciso falar: o café aparece curto ou cheio: a medida do que queremos ser.
Fiquei de ir ter ao Orfeu depois de almoço. A reunião de sempre com os amigos, alguns poetas da cidade, e quem tivesse vontade de aparecer. As mesas dilatavam-se para nos receber e as cadeiras apareciam consoante. No Piolho não. Ficávamos encavalitados, ou de pé, à espera que um saísse por dez que entravam. Os habitantes da mesa podiam ser fixos, com carreira aberta no café, flutuantes, que apareciam quando e, claro, inteiramente acidentais.
Hoje, posso confessar que no princípio achei tudo uma imensa confusão: a algazarra, a felicidade de estarem ali a cruzar vozes sobre tudo e nada, muita poesia, os filmes que passavam, as histórias de um ou dois contadores inveterados. Pertenciam à gente da cidade, sabiam as histórias das ruas: viram-nas acontecer no traçado. Eram, e são ainda, o modo como o Porto se estendeu, os estreitos que se abriram, os acordos, os ódios e, sobretudo, os cafés. O Piolho cheirava a início de outra vida. Conspirações no ar com o fumo ofegante do café. O Majestic ainda não estava restaurado e a palha teimava em sair dos estofos desfeitos. Muito pessoal das Belas Artes em Art Nouveau. Um ar de margem, um tudo-nada blasé, em ambiente belíssimo de princípio de século.
Habituei-me depressa àquilo dos cafés, à sujeira que fazíamos a brincar com os pacotes de açúcar semi-vazios, aos risos correndo sobre a mesa, ao barulho das cadeiras apertando-se para dar lugar a quem ia chegando, às piadas com que nos contemplávamos, às discussões mais fascinantes do que as aulas na Faculdade, às chávenas borbulhantes como as nossas vozes no princípio da tarde. Desaparecerão com certeza os cafés do Porto. Um banco aqui, uma loja acolá, cemitérios desassombrados do espírito, pisando o calor benéfico dos antigos cafés. Eu sentia vagamente que eram eles o coração da cidade que bate no pulso de todos nós. Empunhávamos a chávena como uma arma em flor, desalinhávamos as colunas, sacudíamos o bolor, falávamos com as palavras de amanhã.
Mesmo vindo de fora, sei que sofrerei mais quando sentir desmoronar-se este velho mundo de porcelana branca fumegando sobre as mesas barulhentas do que com qualquer amor incompleto. É que sem o confessar, amamos numa cidade o que nos preserva de um amor inteiro relativamente aos outros: amamos as zonas purulentas e sombrias do seu carácter, o cheiro das ruas insalubres, o desenho do lixo amontoado nas ruas, as casas a cair recortando na noite as formas da nossa infância. Amamos de modo doentio tudo o que achamos imperioso fazer desaparecer. O melhor e o pior são uma, e a mesma coisa. É esse o sentimento que as ruas nos devolvem: temos com a cidade uma relação anal.
O empregado pede-nos que apertemos o círculo para poder passar. Projecta-se uma publicação de poemas, ah, sim, de poetas ligados ao café. Estamos no café Orfeu e alguém grita: Orfeu 4. O líquido vai desaparecendo nas chávenas, mas o bulício continua, os projectos alimentam-nos, os pacotes de açúcar rasgados e espalhados à toa, a mesa a rodopiar em nós. O vício dos cafés. Ou vício apenas. Que outra coisa tem graça que chegue para nos salvar?
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