Rosa Alice Branco

Viral: Ética e Memética



Às vezes sou surpreendida por ideias avulsas que inusitadamente entram em ressonância e, a partir daí, não consigo aceitar que viveram tanto tempo separadas. E no entanto é mesmo assim a realidade, tecida de complexidades que a escrita apanha à revelia. Estamos a falar de vírus turbulentos, ditos por palavras pequeninas que bailam como poeira e que em poucas letras condensam universos. 

Uma destas palavrinhas aplica conceitos da teoria da evolução de Darwin à cultura. Trata-se do “meme”, neologismo de Richard Dawkins, fruto da constatação criativa de que existem replicadores que, à imagem dos genes, actuam com a mesma operatividade incansável no domínio das ideias. Desde que haja selecção e variação (o meme sofre pequenas variações ao ser transmitido) o processo está em marcha e nada o pode deter, independentemente das consequências. O meme só “quer” ser imitado, replicado. O pensamento de Dawkins, nomeadamente no livro O gene egoísta, não só analisa estas unidades replicadas, estes mementos que se instalam na memória colectiva, como funda o sistema em que podem ser integrados – a Memética. 

Existem replicadores que, à imagem dos genes, actuam com a mesma operatividade incansável no domínio das ideias.

Os memes podem ser qualquer coisa no mundo das ideias – tal como uma parte dessa ideia, um slogan, um desenho – ou na cultura material, de que são exemplos os jeans e os óculos. Cada um destes memes complexos inclui ainda outros, como fecho éclair e lentes, que se replicam inelutavelmente, quer queiramos, quer não. Uma vez iniciado, o processo é irreversível.

Susan Blackmore alarga o conceito de Dawkins e implementa um domínio de aplicação de uma espécie particular de memes: os tecno memes ou, temes. São as replicações de que falámos, mas oriundas e alimentadas pelo universo da tecnologia, tal como os telefones, as televisões, os computadores, de toda a espécie. Ao comentar os temes, até às últimas consequências, Susan Blackmore depara-se com um fenómeno inédito, que até aí pertencia à imagética da ficção científica: a existência factível de um mundo de replicações tecnológicas que dispensem a raça humana. 

A única lei estabelecida antes da deflagração plena de uma realidade memética particular é a obrigação que o meme possui para a replicação, e consequente evolução, mas ignoramos se se vão multiplicar aritmética ou exponencialmente, e quais as mutações de que é capaz. Assim, para além da sua imparável realidade e das considerações teóricas que nos possam suscitar, os memes e grupos de memes podem ser perspectivados como grandes mentiras e grandes verdades, perpetuadas pela replicação, pelo que são, frequentemente, objecto de pensamento no âmbito da Ética.

Se a realidade se resumisse a “genes egoístas” – como em certas utopias negativas do mundo literário – por mais que os memes e temes possam ser complexos e apelem à criatividade, eu não sabia bem o que havia de fazer à minha vida. A boa notícia é que existem clareiras onde os genes egoístas carecem de sentido. Estou a pensar nas ZAT de que nos fala Hakim Bey. “ZAT” é a sigla para “zona autónoma temporária”. Quando entramos numa ZAT escapamos ao espaço e ao tempo, entramos em experiência de fluxo. A maior parte as vezes, acontece em momentos iluminados, como quando conversamos animadamente com amigos e se cria um ambiente mágico, quando estamos embrenhados na escrita, ou na música, ou em nada, e o tempo se ausenta, e do espaço o que se sabe? Nada, porque se uma ZAT for repertoriada, deixa de existir enquanto tal. 

Há pessoas que criam ZATs à sua volta como se nascessem munidas de um íman de felicidade. Há outras que, por mais que cumpram todas condições para serem felizes, nunca se deixam encantar. E há ainda outras que se instalam nos lugares de topo e retiram a magia a uma cultura, a um povo, a uma colectividade. Não interessa a dimensão: uma autarquia ou a Europa inteira, um grupo de uma dezena ou um milhão.

Já assistimos a muitos massacres causados pela fácil transmissão de memes. E ao sermos vítimas indefesas e, até agora, inoperativas de um massacre etiquetado com a palavra “corrupção”, podemos pensar que se trata de um meme, ou de um conjunto de memes. Na verdade, a corrupção replica-se e esconde-se de tal modo que parece ser um meme particularmente estratega, transmissível com uma facilidade assustadora, abonado por uma impunidade que faz parte do seu conceito, no seu estado mais puro. Mas, espanto dos espantos, o facto mor é que a corrupção não possui uma das características dos memes: a obrigação de se replicar não está no seu ADN.

Temos que aceitar que a corrupção é uma escolha, escolhida por alguns em benefício próprio.

Tenho de apelar a toda a minha lucidez para compreender que a corrupção – “peste” mais espalhada do que a peste – contrariamente a um meme que está condenado a replicar-se, não se constitui enquanto obrigação cega de réplica. Meus caros, por mais indigesta que esta ideia seja, temos de aceitar que a corrupção é uma escolha, escolhida por alguns em benefício próprio, e obrigando todos os outros a serem negativamente afectados por ela. O que nos enganou, ao pensarmos na corrupção como meme, foi o facto de que, por um lado vivemos num sistema dito democrático, e a corrupção é o conceito que a contraria, e por outro, esta vinga e multiplica-se sem ser eleita por votação isenta. Implica uma divisão de trabalho tão cobarde e iníqua, que os corruptos bebem e os outros é que sofrem a ressaca. Grande alarido nos meios de comunicação e a impunidade passeia, descarada, sem que alguém reivindique direitos e deveres.

Em segundo lugar, o que nos fez pensar a corrupção como pertencendo ao universo dos memes, é que a corrupção possui, igualmente, as suas unidades de operação: tráfico de influências, destruição de provas (tal como as escutas), luvas para todos os dedos, opacidade disfarçada de transparência, e um nunca mais acabar de ideias estafadas, porque nem é preciso ser muito inventivo, já que a oposição encena apenas uma indignação que nunca se traduz em dignidade.

Durante muito tempo fui crédula, por respeito e amor à ideia de Democracia. Por isso, esta ideia tão extravagante e, no entanto, a mais real com que nos deparamos, é que vivemos numa democracia cujo valor mais sólido é a livre escolha com que os corruptos atiram um país para o cadafalso.

Vivemos numa democracia cujo valor mais sólido é a livre escolha com que os corruptos atiram um país para o cadafalso.

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